O Brasil nos BRICS - e a antiga busca por protagonismo nas relações internacionais

Por Hiran Mauá
Professor e Advogado
Mestre em Geografia (UFSCar)
Especialista em Relações Internacionais (FESPSP)

A Cúpula dos BRICS, recentemente realizada no Brasil (4 a 7 de julho de 2025), oferece um momento oportuno para discutir o atual lugar do país nas relações internacionais: por um lado, constrangido por limitações sistêmicas históricas; por outro, aventurando-se mais corajosamente nas possibilidades que se abrem com as fissuras da hegemonia estadunidense, em busca do tão almejado protagonismo global e da liderança latino-americana.

O acrônimo "BRIC" (sigla para Brasil, Rússia, Índia e China) surgiu em 2001, cunhado pelo economista Jim O'Neill em um artigo para clientes da Goldman Sachs. O texto tratava de quatro países que, embora bastante distintos entre si, compartilhavam algumas características fundamentais:
a) vastidão territorial (notadamente Rússia, China e Brasil), abundância de recursos naturais, presença geoestratégica relevante e capacidade de expansão interna;
b) populações numerosas e jovens (sobretudo na Índia e China), capazes de manter mercados internos robustos e prover força de trabalho em larga escala;
c) taxas médias de crescimento econômico superiores à média global no início dos anos 2000;
d) estabilidade macroeconômica crescente e, à época, maior abertura ao comércio e ao investimento internacionais;
e) crescente integração ao comércio global e atração de investimentos estrangeiros diretos;
f) reformas políticas e institucionais internas que, mesmo incompletas, favoreciam maior previsibilidade e racionalidade econômica.

Jim O'Neill concluiu que essas características permitiriam que os BRIC exercessem influência crescente na economia global no início do século XXI, reconfigurando as hierarquias internacionais herdadas da Guerra Fria.

A sigla e, sobretudo, a ideia que ela encerrava, ganhou força nos meios econômicos e políticos internacionais. Os quatro países formalizaram a existência do BRIC em 2009, alterando o nome para BRICS em 2010 com a entrada da África do Sul (que, apesar de não apresentar as mesmas características dos membros originais, é a maior economia do continente africano). O grupo tornou-se um fórum de relevância crescente, pautado pela crítica à ordem internacional vigente e pela proposição de agendas alternativas.

Nos últimos anos, os BRICS consolidaram-se como a principal alternativa ao "sistema de Bretton Woods", sustentáculo da hegemonia estadunidense desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

A dificuldade inicial de encontrar pontos de convergência entre países tão díspares foi sendo superada gradualmente. A fundação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), em 2014, marcou uma nova etapa de densidade institucional, agora posta à prova com o ingresso de novos membros (Irã, Egito, Etiópia, Indonésia e Emirados Árabes Unidos), que não compartilham os atributos estruturais dos membros fundadores, tornando o mosaico do Sul Global ainda mais complexo.

Na Cúpula realizada no Rio de Janeiro, com as ausências de Xi Jinping (China) e Vladimir Putin (Rússia), e a presença de Narendra Modi (Índia) e Cyril Ramaphosa (África do Sul), a tônica foi sinalizar alguma coesão em meio às divergências (e até conflitos) entre os países-membros.

Entre as declarações mais expressivas do encontro, destacam-se: o compromisso de alcançar 30% dos financiamentos do NBD em moedas locais até 2026; a defesa de uma reforma urgente no Conselho de Segurança da ONU; e críticas às barreiras comerciais “verdes” impostas pela Europa. Esses pontos indicam a proposta de um novo tipo de multilateralismo, que inevitavelmente colide com os interesses da hegemonia estadunidense e de seus aliados ocidentais (Europa, Canadá, Japão e Austrália), organizados em uma complexa arquitetura internacional que envolve, entre outras formas, o G7 e a OTAN.

A contestação promovida pelo Sul Global não é novidade, remonta à Conferência de Bandung (1955) e ao movimento dos países não alinhados, mas revela-se hoje mais efetiva do que os pleitos do século XX, e mais ajustada aos interesses geopolíticos atuais de China e Rússia. Para o Brasil, no entanto, essa oposição binária entre BRICS e Ocidente pode ser custosa, afinal, entre os fundadores, é o que possui os laços históricos mais profundos com os Estados Unidos e com a cultura ocidental, ainda que em posição estruturalmente subalterna.

Ainda assim, abrem-se possibilidades concretas, como a de o Brasil atuar como mediador estratégico. Para isso, é preciso manter-se comprometido com os BRICS, sem romper os vínculos com EUA e aliados, uma equação cada vez mais delicada, sobretudo diante de um eventual retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o que tende a empurrar o Brasil para a órbita chinesa. A China, por sua vez, tem aproveitado essa conjuntura para ampliar sua influência na política externa brasileira, tornando-se não apenas o principal parceiro comercial do país, mas também investidora em infraestrutura e colaboradora em áreas tecnológicas e culturais.

Para consolidar sua posição, o Brasil precisa também firmar-se, de maneira inequívoca, como o líder regional na América Latina. E isso implica em muito mais que retórica: exige investimentos públicos e privados, cooperação para o desenvolvimento e integração em diversas esferas. É preciso exercer uma liderança ativa e construtiva, substituindo a velha ideia de “liderança natural” por práticas efetivas de solidariedade regional.

A relação entre Brasil e Estados Unidos é marcada por assimetrias profundas: o apoio estadunidense ao golpe de 1964, os obstáculos ao desenvolvimento industrial autônomo, a adesão forçada a regimes comerciais desfavoráveis e o preconceito racial e cultural são apenas alguns exemplos. Já a relação com a China, embora envolva divergências em temas como democracia e direitos humanos, tem sido mais pragmática e benéfica. A China é hoje o principal parceiro comercial e o maior investidor estrangeiro em infraestrutura. O NBD, presidido por Dilma Rousseff, já aprovou mais de 40 bilhões de dólares em projetos, sendo 22 bilhões já desembolsados. O BNDES captou, até aqui, 1,7 bilhão de dólares em recursos destinados a iniciativas voltadas ao clima e à infraestrutura.

Não se trata de estremecer a relação com os EUA, mas de abandonar a condição de país tutelado. O BRICS oferece uma estrutura institucional que permite ao Brasil alguma margem de manobra para ajustar seu grau de aproximação com os EUA - respeitando mais os interesses pátrios e não apenas como reflexo automático da hegemonia alheia.

A conjuntura internacional favorece essa inflexão. Os Estados Unidos atravessam instabilidades internas e declínio relativo de influência; a Europa enfrenta problemas estruturais graves, como a Guerra na Ucrânia, o envelhecimento populacional, crises migratórias e perda de relevância militar.

Contudo, o cenário nos BRICS também não é livre de riscos. A recente expansão do bloco incorporou países com grande potencial comercial, mas com profundas divergências culturais e geopolíticas. O principal risco para o Brasil, porém, não está em ser arrastado para as agendas de outros membros (a tradição diplomática brasileira é hábil nesse sentido), mas sim em trocar a subordinação aos EUA pela dependência da China. Com a China assumindo cada vez mais o papel de principal financiadora dos BRICS, o desafio brasileiro é manter a relação bilateral em bases de horizontalidade e autonomia.

Neste momento histórico, o Brasil tem diante de si uma rara oportunidade. O relativo enfraquecimento do modelo hegemônico ocidental abre espaço para que o país assuma um papel mais ativo na construção de uma nova ordem internacional. Mas isso exigirá coragem política para enfrentar a resistência interna de setores da elite econômica que lucram com a subalternidade.

Dito isso, não há mais espaço para presidentes que batem continência à bandeira dos Estados Unidos, como fez Jair Bolsonaro em 2019.

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