Linguagem jurídica: a primeira barreira do estudante de Direito

Por Hiran Mauá
Professor e Advogado
Mestre em Geografia (UFSCar)
Especialista em Relações Internacionais (FESPSP)

A linguagem técnica do Direito é um grande desafio para quem ingressa em seu estudo. Os primeiros meses — quiçá anos — de um curso de bacharelado em Direito podem tormentosos pela incompreensão do texto que se encontra em leis, doutrina e jurisprudência.

Essa barreira linguística, que é um longo ritual de iniciação no mundo jurídico, pode ser frustrante. Muitos dos alunos recém-chegados deparam-se com um vocabulário estranho, uma estrutura argumentativa altamente formal e textos truncados. O impacto inicial desse choque linguístico pode ser desestimulante e gerar um sentimento de inadequação. A dificuldade em compreender textos legais, doutrinas e decisões judiciais, muitas vezes, impede uma melhor apropriação do conhecimento jurídico, tornando o aprendizado mais superficial, dogmático e distante da realidade social.

Que atire a primeira pedra o atual profissional do Direito que, quando aluno, não decorou para fazer a prova um comando de lei sem ter a menor noção do que ele significava... Ainda pior: o desespero de se fazer a prova com consulta à legislação e não conseguir interpretar o texto.

Lembro-me vivamente, dos meus dias de discente, a dificuldade de entender o linguajar jurídico - e, à época, não dispúnhamos das ferramentas da tecnologia atual, aptas a sanar as dúvidas do estudante.

Essa barreira linguística é parte de um legado histórico do Direito enquanto instituição. O arcabouço normativo brasileiro é fortemente influenciado pelo modelo romano-germânico, cuja tradição jurídica valoriza a precisão técnica e a estabilidade dos conceitos legais. E, sim: por tratar de fatos e questões da vida material com palavras escritas e faladas, o Direito precisa se munir da riqueza da língua para ser efetivo e seguro. Não se trata, de forma alguma, de defender a precarização da técnica.

No entanto, sob uma ótica sociológica, é preciso reconhecer que a linguagem do Direito reflete a estrutura social existente. A complexidade do discurso jurídico, longe de ser apenas uma necessidade técnica, também age como um filtro social que restringe o acesso pleno ao conhecimento jurídico. A dificuldade da linguagem funciona, assim, como um mecanismo que reforça a ideia de que sua compreensão e exercício são privativos a uma classe profissional fechada.

Os estudos da linguagem e da semiologia ajudam a compreender melhor esse fenômeno. Ferdinand de Saussure ensinou que a linguagem é um sistema de signos que estabelece significados dentro de um contexto social. No Direito, essa construção é altamente especializada e restrita a uma comunidade discursiva que compartilha determinados códigos. Michel Foucault, por sua vez, analisou como o discurso jurídico é uma ferramenta de poder, estruturando relações sociais e definindo quem pode ou não ter acesso ao conhecimento.

Embora haja, nos últimos anos, um movimento crescente no Poder Judiciário brasileiro para simplificar o discurso jurídico e torná-lo mais acessível à população — por exemplo pelo “Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples”. Ainda que o papel da linguagem técnica como barreira social e profissional tenha diminuído muito em tempos recentes, o campo profissional do Direito ainda se apresenta dominado por uma linguagem excessivamente complexa.

O uso decorativo - cada vez menor, mais ainda existente - de brocardos e expressões em latim, construções sintáticas rebuscadas (e muitas vezes incorretas do ponto de vista gramatical) e termos altamente especializados dificulta não apenas a compreensão para os leigos, como também impõe uma barreira inicial para os estudantes que chegam ao curso de Direito sem qualquer familiaridade com esse universo linguístico.

É fundamental que os professores do curso de Direito desempenhem um papel ativo na mediação desse conhecimento. Ensinar a tradição e a linguagem jurídica é, sem dúvida, uma necessidade, pois o Direito exige precisão terminológica e técnica para se evitar ambiguidades na interpretação e aplicação das normas. No entanto, esse ensino deve ser acompanhado de uma reflexão crítica sobre os vícios elitistas da tradição jurídica brasileira. Professores devem buscar introduzir os alunos ao vocabulário técnico sem reforçar a ideia de que a dificuldade da linguagem é uma virtude em si mesma. Ao contrário, é necessário desenvolver metodologias que aproximem os alunos desse universo linguístico sem desmotivá-los — e que incentivem, sobretudo, a simplificação do discurso jurídico na comunicação do profissional do Direito com a sociedade.

A popularização atual do conhecimento jurídico — ao menos dos pontos mais relevantes para o exercício pleno da cidadania — é um fenômeno social positivo e que não importa em precarização da técnica, mas o desenvolvimento e fortalecimento de nossa sociedade e democracia. Afinal, se o Direito existe para regular as relações sociais e garantir a justiça, que sua linguagem técnica seja uma ferramente, e não um entrave, às suas funções primordiais.


Para referências bibliográficas (padrão ABNT):

MAUÁ FILHO, Clovis Hiran Fuentes. Linguagem jurídica: a primeira barreira do estudante de Direito. Blog do ISEP, 22 mar. 2025. Disponível em: https://www.blogdoisep.com.br.

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