Sobre o "PL da Devastação"

Por Hiran Mauá
Professor e Advogado
Mestre em Geografia (UFSCar)
Especialista em Relações Internacionais (FESPSP)

Na triste noite de 21 de maio de 2025, o Senado Federal aprovou, por 54 votos a 13, o Projeto de Lei n.º 2.159/2021, que estabelece a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. A origem do projeto remonta a 2004, quando o então deputado federal Luciano Zica (PT-SP) apresentou o PL n.º 3.729/2004, com o objetivo de consolidar normas para o licenciamento ambiental no Brasil. À época, a proposta era vista como um avanço no sentido das políticas ambientais, especialmente quanto ao fortalecimento técnico e à padronização de procedimentos, preservando o princípio da precaução (que impõe a escolha por medidas preventivas e mais seguras sempre que houver risco ambiental ou incerteza científica) e os direitos socioambientais.

Após um cochilo legislativo de quase vinte anos na câmara baixa, o projeto foi retomado em 2021 sob nova relatoria, agora do deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), que destroçou o sentido do texto original para atender aos interesses dos setores do agronegócio, da mineração e da construção civil. A nova legislação altera de forma estrutural a lógica do licenciamento ambiental prevista na Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n.º 6.938/1981), ao eliminar salvaguardas essenciais, reduzir a exigência de estudos prévios e introduzir dispositivos como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que permite a emissão de licenças com base exclusivamente na autodeclaração do empreendedor — o que compromete diretamente a capacidade estatal de fiscalização, cria brechas regulatórias significativas e representa um risco iminente para o meio ambiente. Além disso, ao excluir da análise prévia (conjunto de estudos e pareceres técnicos exigidos no processo de licenciamento ambiental) os impactos sobre comunidades indígenas não homologadas e territórios quilombolas não titulados, a norma fere frontalmente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a "Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais", que assegura o direito desses povos à consulta livre, prévia e informada.

Os interesses em jogo são claros: trata-se do setor agroexportador, grandes empreiteiras, associações industriais e mineradoras, que buscam reduzir os custos e prazos de licenciamento para acelerar obras e empreendimentos, à custa do meio ambiente e das populações tradicionais. Tais atrocidades legislativas geraram críticas de especialistas ambientais e da comunidade científica envolvida — que, como de costume, não reverberaram na desinteressada sociedade brasileira nem constrangeram a atuação perniciosa dos parlamentares envolvidos.

A versão aprovada pela Câmara (em 2021) foi encaminhada ao Senado, onde tramitou com celeridade sob relatoria do senador Confúcio Moura (MDB-RO), sendo aprovada em 2025. A proposta recebeu apoio majoritário da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), bloco que reúne partidos como o PL, o União Brasil, o PP e parte do MDB e Republicanos.

A lamentável aprovação de uma lei dessa natureza revela uma escolha civilizatória feita por nós, sociedade brasileira. A função social do licenciamento ambiental é assegurar que o interesse público prevaleça sobre a lógica privada da maximização de lucros. A fragilização que a nova lei impõe a essa lógica significa a renúncia do Estado à sua responsabilidade constitucional de proteger o meio ambiente de forma sustentável, conforme o artigo 225 da Constituição Federal.

O impacto internacional e os danos diplomáticos também são claros. A aprovação do PL às vésperas da 30ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP30), que será realizada em Belém-PA, em novembro de 2025, fragiliza imensamente a credibilidade internacional do país como, talvez, o mais relevante player das questões ambientais. Países europeus e doadores do Fundo Amazônia já manifestaram preocupação. Fundos verdes internacionais, inclusive os vinculados a cláusulas ambientais em acordos comerciais, como o entre Mercosul e União Europeia, podem ser suspensos ou revistos, caso o país siga desmontando sua governança ambiental.

Diante desse cenário, a judicialização da questão provavelmente será o próximo passo. O Supremo Tribunal Federal (STF) já tem jurisprudência consolidada no sentido de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é cláusula pétrea constitucional (ou seja, não pode ser subtraído). Organizações ambientais envolvidas com a temática já prometeram propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), caso o presidente Lula sancione o texto sem vetos substanciais. O Ministério Público Federal (MPF) também poderá acionar o STF, entre outros evidentes motivos, pela violação ao princípio da proibição de retrocesso socioambiental.

A aprovação do "PL da Devastação" comprometerá o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), reativado em 2023 e responsável por uma redução expressiva do desmatamento. Justo agora que o desmatamento tem recuado no Brasil, o Congresso Nacional aprova uma proposta que ameaça solapar os avanços conquistados. A nova legislação enfraquece a capacidade dos órgãos de controle como IBAMA, ICMBio e os órgãos ambientais estaduais, muitos já aparelhados politicamente há anos e fragilizados em suas capacidades técnicas.

A área total desmatada no país caiu 32,4% em 2024, com quedas significativas em cinco dos seis biomas brasileiros: 58,6% no Pantanal, 42,1% no Pampa, 41,2% no Cerrado, 16,8% na Amazônia e 13,4% na Caatinga, mantendo-se estável apenas na Mata Atlântica. Esses dados animadores decorrem do fortalecimento institucional, da reativação de programas como o PPCDAm e do compromisso assumido pelo atual governo brasileiro no combate à mudança climática e à destruição ambiental. Ao aprovar o PL n.º 2.159/2021, o país envia ao mundo um sinal contraditório: desmonta sua governança ambiental justamente quando começava a colher resultados positivos - tudo isso às vésperas de sediar a COP30.

No plano interno, dois recados são claros: O primeiro, de que o Congresso Nacional (majoritariamente de oposição) sangrará o atual governo o quanto puder, afinal, as próximas eleições estão logo ali, em 2026; o segundo, de que o atual governo não possui forças políticas para enfrentar grupos de interesses opostos, como os do agronegócio e da mineração de exportação.

O Brasil já escolheu seu caminho na encruzilhada civilizacional. Entre bancar seu compromisso com a democracia ambiental e a justiça climática, ou destruir sua natureza pelos interesses econômicos mais fáceis e imediatos - avançou pela trilha mais vergonhosa.

Mais uma vez, aposta-se todas as fichas para que o STF (a atualmente a única força capaz de frear o Congresso Nacional) coloque o país em melhores termos.


Referências bibliográfica

ABRAMPA. Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente. Nota Técnica sobre o PL 2.159/2021. Brasília, maio 2025.
ARAÚJO, Suely. O PL do licenciamento ambiental e a desconstrução do direito ambiental brasileiro. Observatório do Clima, 2025. Disponível em: https://oc.eco.br. Acesso em: 24 maio 2025.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 3.729, de 2004. Autoria de Luciano Zica. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/27693. Acesso em: 24 maio 2025.
BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n.º 2.159, de 2021. Relatoria de Kim Kataguiri e Confúcio Moura. Senado Federal. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/146743. Acesso em: 24 maio 2025.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. PROGRAMA PPCDAm – Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Brasília: MMA, 2023.
CONSTITUIÇÃO (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
INSTITUTO DO HOMEM E MEIO AMBIENTE DA AMAZÔNIA (IMAZON). Desmatamento na Amazônia Legal tem menor índice desde 2018. Belém: Imazon, 2024. Disponível em: https://imazon.org.br. Acesso em: 24 maio 2025.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Dossiê: o que está em jogo no licenciamento ambiental. Brasília: ISA, 2025.
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OBSERVATÓRIO DO CLIMA. Brasil reduz desmatamento em todos os biomas, exceto Mata Atlântica. Brasília: OC, 2025. Disponível em: https://oc.eco.br. Acesso em: 24 maio 2025.
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Convenção n.º 169 sobre Povos Indígenas e Tribais. Genebra, 1989.
PPCDAm. Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Brasília, 2023.
SENADO FEDERAL. Senado aprova PL que flexibiliza licenciamento ambiental. Folha de S. Paulo, 21 maio 2025.


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