Sobre Direito e reflexão filosófica

Por João Paulo Salva
Professor da Faculdade de Direito de Itu (FADITU)
Mestre em Sociologia (UNICAMP)
Psicólogo (PUCCAMP) e Sociólogo (UNICAMP)

Se é bem verdade que o espanto se encarrega de dar início à Filosofia, é altamente recomendável verificarmos se ainda somos capazes de nos espantar e, por conseguinte, de iniciar a laboriosa atividade de Sísifo. O conhecimento liberta, mas não é imediato aos sentidos e, assim como uma pedra, deve ser carregado nas montanhas da incerteza, com o intuito de acalentar os corações perplexos diante do mundo.

A questão se sustenta na medida em que é cada vez mais comum nos depararmos com um questionamento estudantil acerca da utilidade de um determinado conhecimento, sobretudo quando este conhecimento não possui (aos olhos mais ingênuos) estreita conexão com a profissão escolhida. Questionar nunca é um erro, e sua pertinência é tão clara quanto o Sol, mas o questionamento que já possui em si uma resposta que invalida o próprio questionamento é desprovido de lógica — ou melhor, talvez esteja alicerçado sobre uma lógica um tanto quanto perversa.

Normalmente, quando alguém questiona a validade do estudo da Filosofia em um curso de Direito, não o faz com o intuito dionisíaco de desmascarar o conteúdo racional e, muitas vezes, ortodoxo da disciplina. Ao contrário, questiona de uma maneira desapaixonada e aceita, prontamente, para si, a alcunha de “operador do Direito”. Nesse sentido, de uma só vez, dois golpes são desferidos naquilo que classicamente chamamos de Universidade e de Direito. O primeiro diz respeito ao fato de que, da perspectiva estudantil, a Universidade já não é o lugar do conhecimento; e o segundo, talvez o conhecimento nem tenha seu lugar.

De fato, é muito estranho chamar um advogado de operador do Direito. É inevitável a vinculação de tal significante a uma lógica fordista ou metalúrgica, onde a separação entre operadores, técnicos, programadores e preparadores é tão difundida - reflexo da divisão do trabalho. Mas isso deve se aplicar aos que um dia se propuseram a lidar com as normas jurídicas?

As normas jurídicas, embora dispostas em códigos, não nascem de uma lógica binária, ao estilo dos computadores, celulares e máquinas operatrizes. As normas jurídicas refletem contextos históricos, conceitos morais e concepções de mundo, ao mesmo tempo em que, por sua posição na sociedade, também ressoam na história, na ética e na forma como os indivíduos experienciam as regras sociais.

Diante disso, se é aceita a ideia de que simplesmente se opera com o dado, ignorando que a realidade empírica da norma jurídica é fruto de uma tensa construção inacabada e suscetível aos solavancos da história, o trabalho do advogado fica restrito a um agir com as sombras, na percepção de que isso esgota a realidade. Não é distante, nem configura delírio conspiratório, a ideia de que essa concepção tecnicista do Direito dá início ao próprio fim da profissão. Afinal, não estão as inteligências artificiais a fazer toda e qualquer operação técnica?

Tomar o Direito para além da profissão não significa abandonar seu caráter profissional, mas sim compreender que não é possível realizá-la sem a perplexidade própria dos que refletem. O Direito não é estático, e a transformação do tempo se encarrega da necessidade constante de repensar, desconstruir e reconstruir a normatividade.

O risco e o riso denunciam a falta de espanto, pois, ao cobrirmos o Direito de uma ideologia que apaga a necessidade de pensar, em detrimento do "profissionalizar para capitalizar", justifica-se a posição onde o príncipe de Maquiavel e o pequeno príncipe de Saint-Exupéry assumem o mesmo papel político.

No final das contas, parece ser possível “operar com o Direito” sem o devido cuidado, mas “fazer o Direito” é outra coisa! Nessa perspectiva, não é possível deixar à míngua nem a Norma Fundamental, nem a fundamentação da razão prática e muito menos a crítica no sentido stricto.


Para referências bibliográficas (padrão ABNT):

SALVA, João Paulo dos Santos. Sobre Direito e reflexão filosófica. Blog do ISEP, 1 jun. 2025. Disponível em: https://blogdoisep.blogspot.com .

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