Sobre os EUA - II - A crise de confiança na Aliança Ocidental
As recentes tratativas entre Donald Trump e Vladimir Putin para negociar um acordo de paz para a Guerra da Ucrânia têm causado forte preocupação entre seus aliados da OTAN. Durante a campanha presidencial, Trump repetia o chavão de que encerraria rapidamente a guerra e que os gastos militares dos EUA no apoio à Ucrânia eram injustificáveis. Obviamente, a única forma de cumprir o prometido era cedendo à Rússia, que vem em momento de avanço no campo de batalha e, portanto, posição de força na mesa de negociações.
Se tal acordo prosperar, em qualquer termo que seja, é vitória russa.
Ao excluir das negociações a Ucrânia (simplesmente o país atacado) e países europeus da OTAN (alguns dos quais foram grandes financiadores da defesa ucraniana), Trump mostra-se servil a Putin, solapa aliados tradicionais e condena um país que acreditou nas promessas estadunidenses. Trata-se de um momento dos mais baixos (talvez o mais baixo), em termos de credibilidade e confiança na história das relações internacionais dos Estados Unidos.
Se o andar da carruagem for esse, as mortes ucranianas terão sido em vão. Mais fácil teria sido ceder o território aos russos em troca de algum benefício. Mais inteligente para os ucranianos teria sido, no idos de 2014, não ter flertado com a adesão à União Europeia ou OTAN.
A OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), criada em 1949 no início da Guerra Fria (e, portanto, em um momento de formação dos arranjos estruturais que sustentariam sua ordem internacional) é uma aliança estratégica, de caráter militar (mas não somente), que tem por princípio a segurança coletiva e defesa mútua entre os países membros da Europa, Estados Unidos e Canadá. Ao longo de sua existência, foi o principal sustentáculo da contenção da expansão soviética pela Europa e, após o colapso comunista, transformou-se no principal instrumento da aliança entre Estados Unidos e países europeus. Embora tenha sido bem-sucedida em seus intentos, a OTAN deixou alguns efeitos colaterais, como a perda de capacidade de autodefesa europeia e o excesso de gastos por parte dos Estados Unidos. Na verdade, os países europeus terceirizaram sua segurança e defesa e foram gastar o dinheiro que sobrava com a manutenção de seus Estados de bem-estar social.
Donald Trump bate constantemente na tecla de que a OTAN é onerosa e injusta aos Estados Unidos. Está certo quanto aos gastos, e reclamar é do jogo. Mas não há nada de injusto para os Estados Unidos na OTAN. Ser a potência hegemônica, pela via da liderança, implica em agradar seus aliados. É isso ou partir para o caminho imperial da ameaça e da imposição.
Quando a República romana deu lugar ao Império, ainda muitos séculos viveu como grande potência. Mas o brilho havia ido embora.
A forma como Trump parece entregar a Ucrânia de bandeja aos russos, inclusive exigindo reparação financeira por parte dos ucranianos e humilhando seus parceiros históricos naquilo que se convencionou chamar de "aliança ocidental", coloca os EUA em posição de suspeição. Se são capazes de trair assim aliados tão próximos, o que não fariam com outros países?
Em seu primeiro mandato, Trump já havia demonstrado sinais de suas intenções. Questionou o financiamento da OTAN, ameaçou retirar os Estados Unidos da aliança e adotou uma postura de isolamento em relação aos compromissos multilaterais. Sua visão de mundo não é a de um país líder de democracia capitalistas liberais, mas a de um Império que age por seus interesses imediatos, sem compromisso históricos. A diferença entre a liderança internacional e a força de um Império é justamente a previsibilidade e a confiabilidade dos acordos e compromissos firmados.
No entanto, há outra forma de entender a aparentemente inexplicável postura de Trump em relação à Ucrânia: a influência de uma agenda ideológica ultraconservadora que, em alguns pontos, se aproveita de bons termos com a Rússia de Putin e seus valores também conservadores e autoritários. O atual presidente americano é um dos mais chamativos megafones de um movimento global de extrema-direita que rejeita os valores democráticos liberais e que vê na Rússia como aliado no combate ao que chamam de "globalismo", ao multiculturalismo e à expansão dos direitos civis progressistas. As recentes ações de Trump no tabuleiro da Guerra da Ucrânia não fazem o menor sentido quando se leva em conta os interesses internacionais dos Estados Unidos, mas ganham fôlego quando se considera a as movimentações de setores ultraconservadores que enxergam em Putin um bastião contra os avanços dos setores progressistas em âmbito internacional.
Nessa linha, na guerra ideológica paralela que Trump, Musk, Bannon, e muitos outros combatem contra seus moinhos de vento, enfraquecer os países europeus e, quiçá, colapsar a OTAN, parece o preço a ser pago. A história ensina que uma Europa em crise é terreno fértil para a ascensão do nazifascismo. E talvez, no fundo, a grande estratégia oculta seja essa: humilhar a Europa a ponto de fazer a extrema-direita florescer novamente em solo europeu.
Isso explica porque Elon Musk tem apoiado, sem pudores, o partido neonazista alemão.
Para a Rússia, o cenário não podia ser melhor. Os Estados Unidos de joelhos por paranoia ideológica, a OTAN em crise, os europeus à deriva. Se a Europa tomar, novamente, o caminho torpe do autoritarismo, os russos terão a desculpa para recuperar as áreas de influência perdidas com a expansão da OTAN para o leste após o colapso da União Soviética. Letônia, Estônia, Lituânia e Polônia estão na reta.
Enquanto isso, a China vai expandindo os tentáculos de sua "Nova Rota da Seda" e ocupando comercialmente o vazio político deixado pelos Estados Unidos. A Rússia já tem caderneta de cliente fiel na mercearia chinesa. Os europeus parecem ser os próximos.
O capital está migrando violentamente para a Ásia e a China é o maestro desse movimento. Sem conseguir impedir esse movimento, os Estados Unidos insistem, pateticamente, em maluquices ideológicas.